Catálogo Raisonné Arthur Bispo do Rosario

CRONOBIOGRAFIA DE ARTHUR BISPO DO ROSARIO

Flavia Corpas e João Henrique

As informações sobre a vida de Arthur Bispo do Rosario tiveram como fontes as obras do artista, jornais, documentos de arquivos, prontuários e levantamentos realizados anteriormente por outros pesquisadores, especialmente pelo crítico de arte Frederico Morais e pela psicanalista e curadora independente de artes visuais Flavia Corpas.  

Para enriquecer esta cronobiografia, constam escritos deixados pelo próprio Bispo, que também constituem testemunhos de sua vida. Muitos deles vieram a público apenas recentemente, durante o processo de catalogação do acervo do mBrac para a publicação do presente Catálogo Raisonné.

Entrelaçada à vida e à obra de Bispo, foram incluídas também informações sobre a produção artística de pacientes da Colônia Juliano Moreira (CJM) – antes chamada Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro –, com a finalidade de sugerir a atmosfera em que se expressaram os artistas que viviam ao lado de nosso artista.

Constam ainda nesta cronobiografia, algumas exposições individuais e coletivas relevantes das quais Bispo participou após seu falecimento, bem como livros, pesquisas e projetos igualmente importantes e póstumos. Tal opção se sustenta pela intrínseca relação entre vida e obra desse artista, bem como pela possibilidade de ampliar nossa leitura e compreensão do artista.

1944

Uma nova matéria produzida por David Nasser e Jean Manzon no Hospício Nacional de Alienados foi publicada na revista A cigarra, com o título “Recordações da casa dos loucos”, e trazia novamente Bispo do Rosario como personagem. Desta vez, entre as fotografias, revela-se um homem negro sorridente, sentado junto a uma árvore, vestindo um manto bordado e erguendo uma das mãos na direção do céu. O texto afirma que o paciente se autodenominava Bispo, ignorando que esse era o seu nome de batismo. Neste mesmo ano ocorreu o fechamento da instituição, que teve suas instalações cedidas à Universidade do Brasil, atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com isso, em 23 de março, Bispo foi transferido para o Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro de Engenho de Dentro.   A lista de nomes de funcionários do Centro Psiquiátrico Nacional registrados pelo artista em suas obras é imensa, muitos deles seguidos do texto:  ENGENHO DENTRO RUA DR LEAL HOSPITAL No fardão Lutas e condecorações encontra-se uma medalha que carrega uma estrela de davi e os dizeres: ENGENHO DENTRO Outra medalha traz um brasão de metal e é possível ler: RUA DORTOR LEAL     Voltar à Cronobiografia

1945

Uma reportagem sobre o Centro Psiquiátrico Nacional publicada no jornal Diário carioca em 12 de agosto traz, entre muitas informações e curiosidades sobre a instituição, um relato da produção artística de um paciente. Acompanhado do diretor, doutor Odilon Gallotti, o jornalista é levado à presença de um interno conhecido como “Bispo”, que desenhava sobre uma grande mesa “paisagens, aspectos do próprio hospital”. Esse tipo de imagem está muito presente na produção do artista, marcada pela representação do universo ao seu redor. A ocupação dos pacientes com atividades de desenho era uma entre tantas práticas ligadas à praxiterapia incentivadas nos hospitais psiquiátricos naquele momento.   Após ser presa no governo Vargas e ficar anos afastada do serviço público, Nise da Silveira retornou à função de médica psiquiatra no Centro Psiquiátrico Nacional em 17 de abril de 1944 e assumiu a coordenação da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação em maio de 1946, espaço que, entre outras oficinas, abrigou um ateliê de pintura e modelagem. Apesar de Bispo do Rosario e Nise da Silveira terem passado pelo hospital de Engenho de Dentro no mesmo ano, não há registros de que eles tenham se encontrado, nem de que ele tenha frequentado o ateliê – que, posteriormente, daria origem ao Museu de Imagens do Inconsciente.     O doutor Odilon Gallotti era um velho conhecido do artista, ainda dos tempos da Praia Vermelha, como deixa revelar uma de suas vitrines-fichário: ODLON GALLOTE DE JESUS MEDICO...

1946

Em 18 de fevereiro, foi transferido novamente para a CJM, retornando ao Centro Psiquiátrico Nacional no dia seguinte. Não se sabe a razão do rápido retorno. Em 9 de maio, sob a responsabilidade de Humberto Leone, filho de José Maria Leone, deixou o hospital. Trabalha como segurança e cabo eleitoral de Gilberto Marinho, candidato ao Senado, e de Humberto Leone, candidato à vaga de deputado estadual no Rio de Janeiro.   O nome de Humberto Leone aparece em um dos cadernos que Bispo do Rosario usava para, acredita-se, rascunhar nomes e outras informações que incluiria posteriormente em suas obras. Esses cadernos fazem parte da obra postumamente intitulada Trem de espera.     Voltar à Cronobiografia

1948

Em 27 de janeiro, Bispo foi internado novamente no Centro Psiquiátrico Nacional, sendo transferido em 6 de abril para a CJM, onde permaneceu até 1954.    No final da década de 1940, foi criado o primeiro ateliê de pintura para pacientes psiquiátricos de que se tem registro na CJM, a Colmeia de Pintores. Em 1950, realizou-se a exposição Arte Psicopatológica, durante o I Congresso Internacional de Psiquiatria, em Paris, que recebeu trabalhos artísticos produzidos por pacientes psiquiátricos de todo o mundo, incluindo 395 obras da Colmeia de Pintores, da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional e da Escola Livre de Artes Plásticas do Hospital do Juquery, na cidade de Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo.  Pouco tempo antes, havia sido inaugurada a Primeira exposição de pintura e arte feminina aplicada da Colônia Juliano Moreira. Não há registro de que Bispo tenha sido convidado para a Colmeia de Pintores, certamente porque a sua produção, naquele momento, não foi vista como artística e não se enquadrava nos parâmetros do ateliê, que incentivava fortemente um trabalho mais figurativo, inclinado à cópia e à reprodução.     Voltar à Cronobiografia

1981

Bispo conheceu Rosangela Maria, estagiária de psicologia contratada pela CJM para dar suporte no tratamento dos pacientes do Núcleo Ulisses Vianna. Os atendimentos prestados por ela passaram a ocorrer inicialmente na sala ao lado da cela do artista, o antigo “bolo”, espaço que já havia servido como um verdadeiro depósito de gente, mas que se transformava em uma sala para atendimento psicoterapêutico coletivo. Avesso ao tratamento, Bispo nunca quis participar das sessões. Rosangela então decidiu ir até ele. Enfrentada certa resistência inicial, conseguiu adentrar seu universo. Os encontros regulares entre ele e a futura psicóloga duraram até 1983, quando ela se formou e teve que deixar o estágio. A relação entre os dois ficou marcada nas obras de Bispo por meio do registro do seu nome em incontáveis objetos.   A relação transferencial que se estabeleceu entre Rosangela Maria e Bispo do Rosario ficou registrada no relatório de atendimento feito por ela. Por meio do documento, sabemos que diversos objetos que constituem o conjunto da obra do artista possuem relação com esse encontro. Carrilhão, por exemplo, o relógio quebrado que ele usava para controlar, por meio de horas imaginárias, a chegada dela e o tempo de duração dos encontros. Já a obra Cadeira e correntes foi apresentada pouco tempo depois de a estudante avisar-lhe que seu estágio estaria no fim. Certo dia, ao chegar à sua cela, Bispo lhe mostrou o objeto, uma cadeira com rodas fixadas aos pés e...

1982

Em 25 de julho, Frederico Morais inaugurou a exposição À margem da vida, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), da qual foi curador. Tratava-se de uma mostra de trabalhos realizados por pessoas em condições de privação de liberdade, como menores infratores, detentos e idosos asilados. No intuito de convencer Bispo do Rosario a emprestar suas obras para a exposição, visto que para ele aqueles objetos tinham outra finalidade, Frederico Morais pediu ajuda a Hugo Denizart. Ele acabou concordando e foi a primeira vez que suas obras foram mostradas ao público em um museu de arte. Segundo o curador, participaram da mostra 15 estandartes, ao lado de trabalhos de outros artistas da CJM, como Itaipú Lace, Muniz, Osvaldo Kar e Antônio Bragança. Havia ainda peças que faziam parte do recém-inaugurado museu da instituição, o Museu Nise da Silveira. No mesmo ano, Hugo Denizart lançou o documentário O prisioneiro da passagem, sobre Bispo.   No relato abaixo, Frederico Morais conta alguns detalhes da exposição: “Responsável pelo Departamento de Artes Plásticas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, eu realizei uma exposição, inaugurada em 25.7.1982, à qual dei o título de À margem da vida, reunindo trabalhos realizados por presidiários, idosos de asilos, crianças da FUNABEM e pacientes psiquiátricos. Para cada um desses segmentos contei com a colaboração de Victor Arruda e Marluce Brasil (crianças), Monica Machado de Almeida (idosos), Denira Costa Rosário (presidiários) e Maria...

1985

Foi exibido na TV Bandeirantes o curta-documentário O Bispo, realizado por Fernando Gabeira como parte da série intitulada Vídeo-cartas.    Em 31 de julho, a revista IstoÉ publicou “Quando explode a vida”, reportagem sobre o interno Bispo do Rosario realizada pelo jornalista José Castello e pelo fotógrafo Walter Firmo.   Sobre a experiência de conhecer o artista, Fernando Gabeira considera que foi um dos acontecimentos mais marcantes de sua carreira: “Tive, como repórter, a oportunidade de encontrar pessoas inesquecíveis. Não necessariamente eram as mais conhecidas. Uma figura que marcou meu trabalho e minha memória foi Bispo do Rosario. (Internado como “esquizofrênico” na Colônia Juliano Moreira, no Rio, onde viveu cinquenta anos como paciente, Bispo do Rosario passou a criar objetos que foram considerados como arte de vanguarda). Passei um período trabalhando com ele no hospício. Vi que era uma figura extraordinária. Num certo momento, ele me pediu para que eu jogasse xadrez com ele. Acontece que ele é que tinha feito o jogo de xadrez e inventado as peças a partir de suas visões. Procurei encarar a situação. Bispo do Rosario me impressionou também pelo fato de ter vivido sete anos numa cela. Terminou reconstruindo o mundo, criou uniformes e tapetes, desenhou bandeiras de países por onde teria passado. Nunca vi força tão grande!”. Os nomes Walter Firmo e José Castello aparecem em duas vitrines-fichário. Como complemento estão anotadas as cores que cada um enxergou na aura de Bispo: WALTE...